31 janeiro 2006

Vôo Cego

Preciso saber como tudo funciona por dentro:
Cada órgão, cada sentimento, cada engrenagem.

Não me basta olhar a beleza pela janela,
Quero saber o nome de cada cor que pinta a paisagem.
Não me basta ganhar a passagem para o paraíso,
Quero saber todo o itinerário da viagem.

Quero respostas para mistérios inexplicáveis,
Para tudo quero provas irrefutáveis.

Tenho os cordões das marionetes nas mãos
E ai de quem por audácia desobedeça
Ao script do filme que criei em minha cabeça.

Não admito não saber os motivos,
Quero saber de antemão o final de todos os livros
Inclusive dos que ainda estão sendo escritos.

Quero mandar no tempo, no vento, no mar
E no coração de quem se aventura a me amar.

Mas, ah! Como eu queria a coragem, só por um instante,
De fechar os olhos, tirar as duas mãos do volante
Só para ver que rumo minha vida ia tomar.

25 janeiro 2006

Um Passo à Frente


Eu me precipito e ocupo todos os espaços, digo todas as palavras, faço todos os gestos. Até ficar tão cercada de mim mesma que se torna impossível alguém se aproximar.
Mas, mesmo assim, por favor, tente estender um pouco mais a sua mão para mim, meu amor. Que eu prometo me retrair para que você possa me alcançar.

Ilustração: Cristian Jungwirth

24 janeiro 2006

Tanta Coisa

Tenho vontade de tanta coisa com você, meu amor. Logo eu, que sempre me considerei imune a alguns clichês, de repente até tenho vontade de casar de manhã, numa igrejinha pequena, dourada pela luz do sol, com flores no cabelo e a alma de pés descalços, linda como só sei ser na sua presença. Tenho vontade de amanhecer todos os dias do seu lado, porque não existe mau humor matinal que resista a uma visão do seu rosto logo no primeiro abrir dos olhos. Tenho vontade de, todas as noites antes de dormir, deitada em nossa cama, aproveitar o silêncio confortável de um amor manso para ler meus livros (um por semana), e deixar que você leia os seus (um por semestre) - cada um no seu ritmo, cada um no seu mundo (mas com as pernas encostadas por baixo dos cobertores). Tenho vontade de ter com você uma vida rica em alegrias simples e de criar um mundo todo nosso: nossa casa, nossas fotos, nossas viagens, nosso filho, nossos planos todos realizados. E só de pensar, meu amor, que você tem todas essas vontades também, eu percebo que, afinal, sou muito mais feliz do costumo imaginar.

16 janeiro 2006

Medo de Avião

Ela morria de medo de avião. Medo não. Pavor. Pânico. Só de pensar na possibilidade de estar dentro de um avião, ela sentia um mal estar. Era uma menina inteligente. Sabia que as estatísticas comprovam que os riscos de um acidente aéreo são mínimos. Mas seu medo não obedecia a nenhum critério racional. Era um disparar do coração, um frio na barriga e uma falta de ar que não cediam a nenhum argumento.

Então, ela conheceu um menino. Eles passearam de mãos dadas pela praia. Viram as estrelas refletidas na água do mar. Criaram apelidos um para o outro. Inventaram 576 formas diferentes de beijar, e se apaixonaram. Um frame qualquer dessa noite seria a melhor tradução que a palavra "idílio" jamais encontrou.

Mas o menino morava em outra cidade, longe, muito longe de onde ela morava, e depois de alguns dias ele precisou voltar para casa. Eles se despediram entre lágrimas e planos de tapear a saudade por telefone e telepatia, e prometeram que se reencontrariam assim que pudessem.

Quando coincidiu de as contas de telefone atingirem a estratosfera por causa dos interurbanos e ela começar a sentir uma dor física de tanta falta que sentia dele, ela decidiu que precisava vê-lo. Então ela comprou suas passagens de avião (infelizmente, não só a de ida), sem nem lembrar de sentir medo. Ela iria, mesmo que fosse de teco-teco, mesmo que fosse dentro do compartimento de bagagens, mesmo que fosse amarrada a uma das asas. Porque o seu amor era um disparar do coração, um frio na barriga e uma falta de ar que não cediam a nenhum medo.

12 janeiro 2006

Café com Leite

Nesses jogos de amor, sou um fracasso. Sempre mostro minhas cartas antes da hora e sou a primeira a dizer "eu te amo", após um período curtíssimo de dúvidas (ai meu Deus, digo ou não digo?), substituídas pela certeza de que se eu não colocar para fora tanto sentimento - seja em palavras, ou em gestos - vou sufocar, ter um treco, ou sei lá o quê. Tudo o que sinto fica borbulhando muito próximo à superfície de meus olhos, escorregando na pontinha da minha língua, e ao primeiro descuido, pronto: já vou me desmanchando em juras de amor eterno e suspiros apaixonados. E lá se vai a minha determinação em ser uma odalisca de ar misterioso, escondendo segredos debaixo de sete véus de cinismo e sorrisos indecifráveis. Eu desisto. Sou espontânea demais para esse papel, essa definitivamente não sou eu. Não sei blefar, fingir ou dissimular, e qualquer tentativa nesse sentido resulta em um desempenho tão vergonhoso quanto, digamos, um rinoceronte tentando se passar por bailarina. Não levo mesmo jeito para a coisa. Por isso, jogar comigo é até covardia: eu sou café com leite.

04 janeiro 2006

Pelo Retrovisor

Vistas pelo retrovisor, as coisas parecem menores do que foram
O tempo desbota as cores e rouba os detalhes da lembrança
E de repente eu já nem sei mais por que chorava, por que sorria
Não me reconheço nas memórias do que recordo que sentia
Não vejo meu rosto nas fotos de quando eu era criança

Difícil é descobrir o que sobrevive a essa enxurrada
O que está em mim do que eu sempre fui, o que é essencial
Se existe algo que o passar dos anos não invalida
Ou se eu serei mil em uma ao longo de uma só vida
Morrendo e renascendo como eu mesma, sem nunca ser igual