19 janeiro 2009

Carta sem Endereço

Essa noite eu sonhei com você, e senti saudades.

Lembrei daquela festinha louca, do ventilador que não parava de rodar – assim como a minha cabeça – com as luzes coloridas por trás, me deixando tonta, e você dançando na minha frente, me deixando ainda mais tonta, em um apartamento que eu não lembro onde era.

Sua especialidade era me deixar tonta. Tonta de tantos beijos em tantos lugares improváveis, tonta de suas conversas que me davam medo, sobre morrer cedo, sobre os extraterrestres, sobre livros obscuros que só você conhecia. Porque eu sempre fui tão certinha, e você sempre foi tão doido, que a gente nunca poderia mesmo ter dado certo.

Mas nós demos certo à nossa maneira, e eu era feliz quando você ainda nem sabia meu nome e nós passávamos horas no telefone, eu deitada no chão do meu quarto com as pernas para o alto, te ouvindo falar sobre tantas loucuras, e querendo que você me levasse com você para experimentar cada uma delas.

Aquela festa, eu naquele vestido preto tão decotado, e você me olhando e tentando desvendar se eu era eu mesma, a voz do telefone. E eu fugindo do que eu mais queria, como costumo fazer. E depois você me beijando, me falando que eu parecia uma personagem de um filme de Almodóvar, e eu até hoje sem saber se isso foi uma crítica ou um elogio.

Você segurando a minha mão e me levando para conhecer seus amigos de apelidos esquisitos e hábitos mais ainda. Você comigo naquele aniversário num jardim, elogiando meu vestido cor-de-rosa, eu encantada com seu encanto por mim. Nesse dia você dançou com minha amiga, e eu senti uma sombra de ciúme apagar o brilho em meus olhos, mas isso você não viu, e eu nunca te falei por puro orgulho.

Eu beijando as suas tatuagens enquanto você admirava minha pele sem marcas. Eu com você te matriculando na faculdade, preenchendo tantas fichas com seu nome, seu endereço, sua data de nascimento e todas as coisas que menos importavam sobre você.

Eu e você acordando no sofá da sala, sem saber até hoje como fomos parar lá, depois de uma noite de excessos e delícias. Eu escorregando pela parede da cozinha, dançando tão leve, e você rindo de mim. Porque você sempre me pedia para dançar para você, e eu sempre tinha vergonha, até que um dia você me ensinou como se fazia, e eu nunca mais esqueci.

Você me falando mil vezes que tinha planos para mim, comigo, e eu com medo de sua inconstância, com medo de me machucar, tentando manter uma distância que, no fim das contas, não me protegeu de nada. Eu com medo de me envolver com você, mas te vendo todos os dias, e querendo te ver sempre mais. Sair do trabalho, passar na sua casa, ficar com você até o horário da sua aula: essa foi a rotina que eu segui por tantos dias, sem sentir nem pensar.

O interfone tocava domingo de tarde, e era sempre você me fazendo surpresas. Eu não sabia como te encontraria: ou pulando em meu pescoço e me cobrindo de beijos, numa alegria que atordoava, ou pedindo meu colo para chorar. Ver você chorando me dava medo, porque você era tão grande e tão confiante, tão maior que tudo, que eu não sabia se poderia tomar conta de você, e realmente não pude. Às vezes, por motivo nenhum ou por todos os motivos do mundo, você chegava se sentindo mal, mal da vida, mal de tudo, e tudo o que eu queria era conseguir fazer passar a sua inquietude, mas isso eu também não soube fazer.

As horas intermináveis de TV e sofá, o sono que me dava no meio de todos os filmes que assistíamos juntos, e você me acordando para me levar para a cama com os travesseiros arrumados do jeito que eu mais gosto.

Todo o ciúme que eu sentia de sua ex-namorada, todo o ciúme que você sentia de meus amigos, e que me ofendia tanto. As mentiras que eu te contei sem nenhum motivo, e que foram descobertas, uma a uma. E você sempre me dizendo toda a verdade, porque você nunca soube mentir, e sempre soube ser descaradamente sincero de uma forma adorável e irresistível.

Nossas brigas por telefone, os silêncios, os soluços, as decisões de viver a partir daquele momento sem nunca mais pensar em você. Então eu caprichava na maquiagem e na pose e ia para as festas, mas não conseguia me divertir. Depois de alguns dias, a gente se falava, e nem era preciso fazer as pazes: tudo voltava ao normal quando você falava o meu nome daquele seu jeito.

Então um dia você me falou que ia viajar, e eu me despedi de você na véspera, desejando boa viagem, sorrindo com a certeza de te reencontrar na volta com um monte de histórias absurdas e engraçadas para contar. Mas você foi, e não voltou. Ficou no meio do caminho, numa curva qualquer de uma estrada qualquer, esses detalhes eu nunca quis saber. Só me contaram que você tinha morrido, assim, desse jeito mesmo, porque para esse tipo de notícia não há eufemismo possível.

E eu fiquei tão assustada, porque a sua morte me parecia ainda mais absurda do que as mortes costumam parecer. Porque você vivia a sua vida acreditando que ia dar tempo para tudo, e que tudo ia dar certo no final, e acho que foi justamente isso que fez com que eu, que sou tão pessimista, me apaixonasse por você. E eu estaria mentindo se dissesse que fiquei triste, porque na realidade eu não consegui sentir nada, só o susto que me deixou sem palavras e sem lágrimas, vagando no meio de pessoas que me olhavam com pena, e me diziam coisas que não faziam o menor sentido. Eu não era capaz de reconhecer nenhum rosto e nenhum gesto de consolo. Só conseguia me sentir perplexa e hipnotizada pelo impossível.

Mas agora, que tanto tempo já se passou, apesar da saudade que ainda dói, eu consigo sorrir quando penso em todas as lembranças doces que você deixou, e não sinto mais medo quando você me visita nos meus sonhos.

12 janeiro 2009

Hipocondria

Tudo começou com uns suspiros. Depois, veio uma tremedeira nos joelhos. Então, olhos lacrimejantes, palpitações e devaneios.

Me assustei. Imaginei os suspiros fossem causados por alguma disfunção respiratória. A tremedeira nos joelhos bem que poderia ser o princípio de um Mal de Parkinson, os olhos lacrimejantes com certeza eram resultado de um problema oftalmológico. As palpitações indicavam claramente uma deficiência cardíaca. Mas o mais preocupante eram os devaneios. “Será que estou ficando louca?” – pensei.

Logo procurei um médico, e expliquei a ele todos os sintomas. Enquanto ele me escutava com interesse, torcia para que ele descobrisse logo qual a doença misteriosa que me acometia. Talvez um vírus africano desconhecido, ou quem sabe uma dessas síndromes raras com nome alemão que só atingem 0,0000001% da população.

Quando acabei meu longo e detalhado relato, perguntei, aflita:

- Então, doutor? O que eu tenho? Pode ser bem sincero, eu estou preparada para o pior – afinal, já tinha pensado na possibilidade do vírus africano e da síndrome rara.

O médico me olhou com uma expressão muito séria e me respondeu:

- Receio que você esteja sofrendo de amor.
- Amor?! Mas essa doença não foi totalmente erradicada através das campanhas de vacinação?
- Ainda ocorrem alguns casos isolados...

O médico continuou sua explicação, mas eu, atordoada, não podia compreender suas palavras.

A suspeita da síndrome rara quase se confirmava. Era o fim. Me imaginei vivendo numa colônia isolada, como as dos leprosos, cercada por enfermeiras de máscaras que vinham me dar papinhas de doente todos os dias, enquanto eu definhava.

Quando voltei a mim, ouvi o médico dizer:

- ... mas, com os avanços das pesquisas no campo da medicina, já temos uma cura para este mal raro.

Cura! Então havia uma esperança! Meus dias não estavam contados e eu podia esquecer a vida de leprosa. Animada, arrisquei:

- Estou disposta a me submeter a qualquer tratamento, doutor. Cirurgia, sessões de quimioterapia, até acupuntura, se for preciso!
- É mais simples que isso...
- Xarope? Pomadas? Aspirina? Repouso? – arrisquei

Então, o médico me explicou: para me curar, só preciso de doses regulares de você, todos os dias, e sem efeitos colaterais. Mas se eu não seguir o tratamento direitinho, a depender da evolução do meu estado, vou ter que ser mantida sob o efeito de sedativos ou, na pior das hipóteses, numa camisa de força.

Você vai ter coragem de negar auxílio a uma pobre enferma?

(Texto escrito em mil novecentos e dezessete anos)

Hora Extra

Pauta de hoje:
9:00h: Uma promessa frustrada de romance tórrido
11:00h: Uma declaração de amor à moda antiga
(Pausa para almoço e manicure)
14:00h: Suspiros pela volta de alguém que está longe
16:00h: Conversas sem sentido com alguém sem futuro
18:00h: Convites para visitas com décimas terceiras intenções

Fora o trabalho.

E meu coração fazendo hora extra para dar conta de tantas atribuições.